O MPF/ES tem atuado no decorrer dos anos na mediação dos conflitos fundiários que envolvem a população quilombola do Norte do Estado. Um dos exemplos é uma ação que foi movida contra o Estado do Espírito Santo pela prisão indevida e ilegítima (sem mandado de prisão ou flagrante) de mais de 30 quilombolas da Comunidade de São Domingos, ocorrida em 2007. A ação resultou em uma condenação em primeiro grau que determinou o pagamento de indenização por danos morais coletivos no valor de R$ 100 mil.

A Justiça acompanhou o entendimento do MPF/ES, que considerou abusiva e agressivamente desnecessária a atuação policial no caso. De acordo com a decisão, “tal fato implicou em grave desrespeito a direitos humanos fundamentais de dezenas de indivíduos de uma mesma comunidade, que presenciou todos os acontecimentos e vivenciou, como grupo, um desrespeito que gerou claro dano moral à população quilombola da Comunidade de São Domingos, configurando situação de humilhação, perseguição, tratamento como uma subcategoria de cidadãos, impondo-se a reparação por meio de indenização”.

A ação militar foi preparada depois da notícia de que alguns quilombolas teriam furtado madeira da Aracruz Celulose. Por conta disso, foi preparado todo um aparato policial para efetuar a busca e apreensão dos supostos materiais: foram até o local equipes do Batalhão de Missões Especiais (BME), da 3ª Companhia do Batalhão Militar do Meio Ambiente (BPMA) e três grupos da 5ª Companhia Independente.

Além de serem encaminhados para a delegacia de São Mateus e não para a de Conceição da Barra, local de suas moradias e onde supostamente teriam ocorrido os fatos, os quilombolas foram mantidos por quase um dia inteiro incomunicáveis. Liberados somente à noite, sem a devida lavratura de auto de prisão em flagrante, não tiveram qualquer assistência para retornar ao município de origem. Verificou-se, ainda, que os quilombolas foram algemados sem que houvesse necessidade para tal medida, já que não apresentaram resistência à atividade policial.

Demarcação. O MPF também manifestou-se contrário a uma ação judicial que pretendia anular o procedimento de demarcação de terras das Comunidades Quilombolas de São Domingos e de Santana, localizadas entre os municípios de São Mateus e Conceição da Barra, no Norte do Estado. A ação é movida por 14 produtores rurais contra o Instituto Nacional de Reforma Agrária (Incra).

Os autores afirmam que, além de não terem sido notificados do início dos trabalhos de identificação da área, os moradores da localidade de São Domingos e Santana não são remanescentes de quilombolas e que a região demarcada nunca foi um quilombo. Além disso, alegam a suposta inconstitucionalidade do Decreto 4887/2003, que regulamenta o procedimento para identificação, reconhecimento, delimitação, demarcação e titulação das terras ocupadas por remanescentes das comunidades dos quilombos.

Para o MPF, não há qualquer nulidade a ser declarada, pois a fase do procedimento de demarcação contestada pelos autores tem como objetivo, justamente, identificar a terra, seus limites e seus habitantes. Além disso, os autores foram notificados posteriormente, na época da publicação do Relatório Técnico de Identificação e Delimitação (RTID).

O MPF também contestou a alegação dos produtores rurais de que a área nunca foi quilombo ou habitada por quilombolas. De acordo com o parecer do órgão, a definição de quilombolas como escravos fugidos e de quilombos como os espaços utilizados como esconderijo por esses escravos durante o período escravocrata não corresponde à compreensão mais adequada e recente das ciências humanas e jurídicas sobre o assunto. Pelo contrário, a correta conceituação de comunidades remanescentes de quilombos e das terras por elas ocupadas segue determinação do Decreto 4887/2003, segundo o qual são considerados remanescentes das comunidades dos quilombos os grupos étnicos-raciais com trajetória histórica própria, dotados de relações territoriais específicas, com presunção de ancestralidade negra relacionada com a resistência à opressão histórica sofrida.

Para o MPF/ES, “uma das características essenciais da cultura quilombola é a territorialidade. A preservação da cultura quilombola objetivada pelo constituinte só se torna efetiva na medida em que se assegura à comunidade étnica o território necessário à sua reprodução física, social, econômica e cultural, exatamente como consagrado no art. 3º, § 2º, do Decreto 4.887/03.”

Melhorias sanitárias. Em 2013, o MPF, em parceria com a Funasa e as prefeituras de Conceição da Barra e São Mateus, conseguiu que fossem implantadas melhorias sanitárias nas comunidades. As tratativas já estavam ocorrendo desde 2006, quando a Funasa anunciou a construção de 47 banheiros nos locais. Foram realizadas melhorias tais como a construção e reformas de poços artesianos e construção de unidades sanitárias, compostas por estrutura, pia, chuveiro, vaso sanitário e caixa d'água. Cerca de dez comunidades quilombolas em São Mateus e nove em Conceição da Barra foram beneficiadas.

Água. Em setembro de 2015, o MPF obteve liminar que obrigava o município de Conceição da Barra e a Companhia Espírito-Santense de Saneamento (Cesan) a regularizar o abastecimento de água da comunidade quilombola Angelim II. As famílias que vivem no local estavam expostas ao consumo de água imprópria e contaminada por bactérias.

Ainda segundo a liminar, até que o abastecimento de água fosse regularizado, município e Cesan deviam disponibilizar caminhão-pipa com a quantidade mínima de 50 litros de água potável por residente.

Recursos Incra. O Ministério Público Federal no Espírito Santo (MPF/ES) obteve decisão na Justiça, em tutela de urgência, para que a União, no prazo de 30 dias, reforce o orçamento do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) para que seja dada continuidade aos processos de reconhecimento de comunidades quilombolas e emissão de títulos de propriedades situadas nos municípios de São Mateus e Conceição da Barra, no norte do Estado. Foi determinada multa diária de R$ 3 mil em caso de descumprimento da decisão, e o Incra deve retomar as atividades assim que os recursos orçamentários estiverem disponíveis.

As atividades a serem desenvolvidas no ano de 2018 para o andamento dos processos administrativos de regularização territorial quilombola, com Relatório Técnico de Identificação e Delimitação (RTID) já iniciado, demandariam orçamento de R$ 62.016,76. No entanto, até o momento, está prevista a destinação de apenas R$ 21.852,00 às atividades da Superintendência Regional do Incra no Espírito Santo.

O valor é necessário para cobrir despesas com diárias, combustível, publicações de relatórios, vistoria, avaliação de imóveis, entre outros. Nesse planejamento orçamentário não foram incluídas as despesas com a contratação do relatório antropológico necessário ao início do andamento dos processos das comunidades de São Jorge e Sítio Vale Grande, Córrego do Macuco e Córrego do Chiado.

O MPF apurou que, em razão da insuficiência orçamentária registrada em 2017 e da projeção semelhante para esse ano, alguns processos de titulação estão completamente parados desde a sua abertura, como é o caso da comunidade Córrego do Chiado, o que tem gerado grande insatisfação na população interessada.

Ação. A decisão ocorreu no âmbito da ação civil pública nº 0018496-18.2017.4.02.5003, ajuizada em julho de 2017, pela Procuradoria da República em São Mateus. A ação inicialmente pedia a suplementação de recursos ao orçamento do Incra, no então corrente exercício financeiro de 2017.

Também foi solicitada a retomada das atividades administrativas da Superintendência Regional do Espírito Santo com objetivo de movimentar os 15 processos administrativos de identificação, reconhecimento, delimitação, demarcação e titulação da propriedade definitiva das terras ocupadas por comunidades quilombolas de São Mateus e Conceição da Barra.

O procurador da República Jorge Munhós de Souza, autor da ação, destaca que a cada dia sem o reconhecimento formal do território quilombola aumenta-se o risco de esvaziamento da diversidade cultural característica da etnia. “Para os povos tradicionais, a terra possui um significado muito além do instituto civilista da propriedade. Terra é garantia de reprodução física e cultural, dos modos de viver e de criar que foram tão valorizados pela Constituição Federal de 1988”, afirma o procurador.